sábado, 23 de maio de 2009

Você tem medo do quê?

Amanda Schneider de Arruda

Guilherme Cruz



No meio das correrias entre as sessões de lançamento no país, Kiko Goifmane - que tem fobia de sangue - conversou com a COMARTE via e-mail.

Ele é diretor do polêmico FilmeFobia, lançado no início de maio. O longa-metragem se constrói como o making of de um documentário fictício no qual o diretor acredita que a única imagem verdadeira e convincente é a do homem em contato com sua própria fobia.
Nesta inusitada mistura entre real e imaginário, se confundem relatos reais e fictícios de fóbicos, atores e atores-fóbicos. Se isso parece confuso, acompanhe aqui a entrevista e depois dê uma olhada no
Diário de Filmagem pra entender melhor o processo de produção do filme.

COMARTE: Como foi o processo de seleção dos atores e não-atores fóbicos e como isso interferiu, ou não, no roteiro? A partir de determinadas fobias se buscaram as pessoas ou as pessoas que "propuseram" as fobias, ao apresentarem seus medos?

Kiko: No caso de atores eu fazia um teste com um detector de mentiras falso, para ver como eles se saíam, se eram exagerados e tal. Pela internet eu recebia relatos de fóbicos e alguns personagens e fobias chegaram pela internet. Porém, a principal forma de chegar aos fóbicos era através de conversas com amigos e pessoas com quem eu trabalho. Quando eu comentava do filme sempre alguém me dizia que tinha alguma fobia ou contava de um amigo que tinha fobia. Alguns quiseram participar do filme. Outros não.

Eu e Hilton Lacerda escrevemos um “roteiro tradicional” com todas as sequências e falas. Depois fomos modificando, trocando as fobias, mas mantemos a base. Queria trabalhar com fobias clássicas (altura e sangue, por exemplo) ao lado de fobias menos conhecidas (botões e ralos). Quando eu trabalhava com ator eu fechava a fobia e a pessoa teria que interpretar uma determinada fobia com uma determinada reação (mais contida, mais histérica etc.). Com fóbicos reais eu tinha que adequar meu roteiro a elas e jamais pedia uma reação. No caso de atores fóbicos (existem alguns no filme) eu pedia que se a fobia não fosse despertada no set eles começassem a atuar.

COMARTE: Vocês mantiveram contato com os Fóbicos depois das filmagens para saber que leitura eles fizeram da experiência? Qual o relato que essas pessoas fazem, como elas avaliam a situação que enfrentaram?

Kiko:
Com alguns fóbicos eu mantenho um contato pessoal. Ninguém participou do filme acreditando que de fato iria superar a sua fobia. Todos disseram que foi bom participar do filme (claro que podem estar mentindo, pois dizem isso para mim que sou o diretor do filme), que é importante falar sobre a fobia e que quando você assume sua fobia você convive melhor com ela. Todos me disseram que adoraram o filme (mas, novamente, podem ter mentido).
As conversas depois do filme, com pessoas que participaram e o público, em geral tem sido boas. Ouvi de um anão que era muito bom falar que existe fobia de anão, pois só eles sabem e sentem isso. É difícil generalizar, mas me parece que falar das fobias é bom para os fóbicos. Em debates depois do filme várias vezes algumas pessoas se declararam fóbicas, claro que espontaneamente. Uma das situações mais curiosas foi uma mulher que se levantou no debate lotado e fez uma observação que ela tinha fobia social e que jamais encararia aquela platéia. Mas quis dizer isso e falou sempre virada para um canto, de costas para o público.
Mas nunca fiz o filme para curar ninguém. Nem quem participa, nem quem assiste.

COMARTE:
Em algum momento vocês (a equipe) conversaram sobre possíveis consequências ou sentimentos que os Fóbicos poderiam sofrer ao vivenciarem de forma extrema os seus medos?

Kiko:
Claro que isso sempre foi uma preocupação. Os fóbicos reais eram sempre cercados de cuidados. Sempre fomos completamente éticos com os fóbicos que toparam participar do filme. Não existia nenhuma surpresa para eles, eles sempre sabiam de tudo que iria ocorrer. Esse procedimento nem sempre eu utilizei com atores, que muitas vezes não sabiam de detalhes nas cenas. Existiam códigos de segurança (uma palavra se as coisas fossem mal), enfermeiro e, principalmente, os fóbicos que davam os limites. Se uma fóbica de aranha falasse que jamais faria a cena com uma aranha verdadeira, eu nunca colocaria uma aranha de verdade. Isso era regra.

Por outro lado, como diz o psicanalista no filme, uma pessoa pode fumar sabendo que aquilo faz mal, uma pessoa pode praticar esporte radical sabendo que corre riscos. Porque, então uma pessoa que tem fobia não pode encarar a sua fobia em um filme? Claro que nunca poderia ser forçada a alguma coisa que não concordasse e isso realmente não aconteceu. Alguns fóbicos me disseram que o filme era positivo por transmitir a sensação de que eles não estão sozinhos e que, de alguma forma, podem partilhar a sua dor. A junção entre fóbicos e atores para mim era fundamental em um filme que discute o que seria uma imagem verdadeira. E a melhor metáfora disso é que também trabalhei com atores que possuem fobias. Onde está a verdade?


COMARTE:
Durante as filmagens, mesmo com os atores não-fóbicos, houve alguma reação totalmente inesperada ou que fujiu do controle e posteriormente foi "censurada" na edição?

Reações inesperadas sim, já que isso era um dos componentes que eu queria no filme. Um espaço para a surpresa. Os atores teriam que reagir ao inesperado. Mas nada que tenha fugido do controle. Segurança era fundamental e não tivemos problemas. Nossa montagem não tem censura alguma, de nada.

COMARTE:
A idéia de captar reações de medo parte de uma experiência própria de fobia, como foi pra você lidar com os medos dos outros?

Kiko:
FilmeFobia, para mim, é um filme sobre um dos pontos fundamentais de compreensão do mundo atual que é o MEDO. Pode-se abordar o medo de uma forma macro, por exemplo tratando do medo americano e europeu do terrorismo ou do medo brasileiro da violência. A abordagem de FilmeFobia, porém, é sobre o medo na esfera íntima.

Quis fazer esse filme também por tratar de um tema tabu (muitos temos fobias, mas não falamos disso publicamente). Acho realmente importante isso. Estamos em 2009 e ainda mantemos muitos tabus.

Lidar com o medo dos outros sempre foi encarado por mim de uma forma muita séria. Quando filmava com um fóbico real existia um clima de muita seriedade no set, de muita concentração. As pessoas estavam ali me emprestando algo muito pessoal, então o respeito era a base de trabalho.

COMARTE:
Nas sessões que você acompanhou, percebeu se alguém saiu da sala durante a exibição, ao se deparar com a próprio fobia na tela? Ou soube de alguma pessoa que tenha passado mal durante a sessão?

Kiko:
Sair da sala durante a exibição de um filme, em um festival, é uma atitude normal que não me assusta nem um pouco. Só que isso pode ser por vários motivos (não gostar do filme, ter um outro no mesmo horário que a pessoa está curiosa etc.) Uma mulher que sente fobia de ratos disse no blog dela, quando passamos o filme em Brasília, que era um absurdo o filme porque todo mundo sabe que ela tem fobias de ratos. Ora, eu nem sei quem é a mulher.
Espero sempre que ao ver o FilmeFobia o público se sinta instigado. Algumas pessoas estã com medo de ver o filme, com medo de que seja um filme de terror. Mas não é. Não existem hiper closes, não existem subjetivas, recursos muito utilizados na gramática do terror. O filme não foi feito para assustar ninguém. É um filme sobre o medo e não para causar medo.

COMARTE:
Ficção e realidade são postas em questão no filme. O que você acha que tem maior "potencial" para suscitar fobias, o real ou o imaginário?

Kiko:
A impressão de realidade talvez seja um ponto que assuste as pessoas no filme. Mas o tempo todo jogamos com fantasia. A Cris Bierrenbach (diretora de arte) criou máquinas alucinadas e muito falsas, algumas até surreais. A luz de Aloysio Raulino beira o expressionismo. Os sons de Lívio Tragtenberg variam entre sons reais e outros completamente alterados. Só que a atuação naturalista dos atores cria uma impressão de que tudo ali é real. O tempo todo surgem coisas na tela que indicam: você está levando a sério demais esse filme, isso é tudo mentira. A presença do Zé do Caixão, por exemplo, é para desconcertar e não para trazer terror. Real e imaginário não e não podem ser categorias opostas. Muitas pessoas riem muito de uma situação que outras sentem-se perturbadas.

COMARTE:
Qual o atual limite entre ficção e realidade, já que você usou também atores no filme?

Kiko:
Classifico como um filme de ficção que possui alguns elementos de documentário (trabalhei com alguns fóbicos reais, com atores e com atores que possuem fobias). Quando estou participando de festivais mais radicais, não sinto que FilmeFobia chegue a ser experimental. Muitos filmes com uma linguagem bem mais radical andam sendo produzidos pelo mundo. As vezes brinco que FilmeFobia chega a ser convencional, mas isso não é verdade. É um filme que trafega entre gêneros, possui elementos de terror (poucos), mas também bastante humor.
Fora questões éticas relativas ao trabalho com pessoas que não são atores, a distinção entre ficção e documentário cabe cada vez mais a cada filme que é feito. Jean-Claude Bernardet chega a dizer que os conceitos de documentário e ficção são muito velhos para entender o audiovisual contemporâneo interessante.

COMARTE:
A fobia já lhe trouxe alguns benefícios?! E como você lida com o seu medo, depois de todas as experiências no decorrer da execução do filme?

Kiko:
Acho que o único benefício de minha fobia foi poder realizar esse filme. Por outro lado, alguns psicanalistas dizem que a fobia é sempre benéfica, porque na verdade o fóbico sofre de uma angústia maior. Provavelmente meu problema não é com sangue e o sangue é somente um objeto “escolhido” para que eu possa continuar vivendo...

Não vivi depois do filme nenhuma situação de confronto com a minha fobia, mas acho que tudo continuou na mesma.

COMARTE:
Você adquiriu outra fobia durante as filmagens?!

Kiko:
Não, com certeza não.
Tenho fobia de sangue isso foi bastante difícil na minha infância e adolescência. Desmaiava bastante, com pequenos cortes e mesmo em aulas sobre aparelho circulatório. Era motivo de brincadeiras, meus colegas sacaneavam muito. Isso me marcou bastante. As pessoas escondem as suas fobias, existe uma certa vergonha nisso. Esse foi um dos motivos que me levou a atuar como fóbico, mas escolhi um papel simples, só tinha que desmaiar (risos). E acho bom desmaiar, não vejo grande mal nisso. E não fiz ninguém desmaiar, somente eu e esse direito eu tenho de desmaiar quando quiser.

COMARTE:
Depois do prêmio em Brasília, o que se espera com o filme em cartaz a partir de maio? E quais os novos projetos?

Kiko:
Brasília foi uma supresa, assim como todos os prêmios que recebemos (melhor filme pelo júri, melhor filme pela crítica, melhor montagem de Vânia Debs, direção de arte de Cris Bierrenbach e melhor ator para Jean-Claude Bernardet). Júris de Festivais são sempre uma incógnita, mas estamos bem felizes com a resposta de festivais. Já participamos de muitos festivais no exterior (Locarno, Rotterdam, Cuba, Bafici, Toulouse entre vários outros) e a receptividade vem sendo ótima.
Sobre o filme em cartaz nunca se pode esperar nada. Prefiro não ter grandes expecativas e sabendo sempre que fiz um filme “pequeno”, de baixo orçamento.
Ainda não tenho um novo projeto, mas sei que vou continuar fazendo documentários, isso me atrai muito. Talvez tenha alguma relação com o meu passado de antropólogo. Uma ficção nova me atrai também, mas estou vendo com calma o que valhe a pena ser filmado. O mundo está cheio de histórias e eu gostaria de escolher uma que merecesse ser contada. E, mais importante, como contar essa boa história.

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